Apoteose da MPB: o arqui-samba Cidade Inacabada

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Cidade Inacabada, de Manu Lafer (1971), é a décima segunda canção do álbum Doze Fotogramas, de 2001. Doze Fotogramas é também o título de uma canção do álbum, esta uma parceria de Lafer com Danilo Caymmi (1948).

Acho que você a conhece. Em todo caso, pode ouvi-la (de novo) por aqui também: TratoreAmazoniTunes ou UOL; Apple MusicDeezer ou Spotify.

A “cadência de engano” que a quantia de canções (treze) traz quando comparada com o título do álbum (Doze Fotogramas) é uma característica importante na obra do cancionista (e também em vanguardas do século XX, como demonstram, por exemplo, La Valse (1920), de Maurice Ravel (1875–1937), ou Sinfonia (1969), de Luciano Berio (1925–2003). E é uma característica recorrente em parte das 300 canções do compositor, cem das quais gravadas. Algumas são parcerias com seu principal parceiro, Danilo Caymmi, outras com Luiz Tatit, Dori Caymmi, Fabio Tagliaferri, Guilherme Wisnik, Alexandre Barbosa de Souza, Bruno Cara e outros. Foi interpretado por Nana Caymmi, Ná Ozzetti, Mateus Aleluia, Germano Mathias, Monica Salmaso, Cris Aflalo, José Miguel Wisnik, entre outros.

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capa do álbum Doze Fotogramas

Alguns de seus títulos dialogam com o conteúdo da canção, como, por exemplo:

    • A Cara Rajada da Jararaca, um título em palíndromo para uma canção cheia de palíndromos;
    • Sem Letra, uma letra mínima que diz não haver letra;
  • Vinheta Baiana, uma mini-canção sobre uma musa de nome Paula Baiana.

Outros títulos – e as próprias canções – dialogam com títulos e conteúdos de canções de outros autores, como, por exemplo, é o caso das canções:

    • Gente nº 3, que dialoga com Gente, de Caetano Veloso (1942), e com Gente nº 2, de Lô Borges (1952);
    • Com Fantasia, que dialoga com Sem Fantasia, de Chico Buarque (1944);
  • Mangarataia, que, no mínimo fonemicamente, remete à Maracangalha, de Dorival Caymmi (1914–2008).

E como Cidade Inacabada, assunto deste texto, cujo título e música dialogam com Cidade Submersa, de Paulinho da Viola, e, no caso da música, também com outras canções do estilo de samba que poderíamos chamar de grandiloqüente com inspiração em samba-enredo, no qual podemos enquadrar a típica Vai Passar, de Francis Hime (1939) e Chico Buarque.

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O meu interesse por esta canção surgiu quando transcrevíamos-na na Presto para o vindouro cancioneiro de Manu Lafer. Ela despertou a curiosidade da Presto de imediato, pois era complexa, em todos os aspectos – melodia, letra, harmonia e forma – o comum em canção é um aspecto equilibrar outro (exemplos: quando a harmonia é adensada, a melodia é rarefeita; quando a letra é densa, a forma é previsível; etc). De um lado, a complexidade harmônica era um grande desafio ao transcritor; e de outro, representar adequadamente em partitura uma canção com assimetrias atípicas era um desafio ao diagramador. Ambas dificuldades eram altas, apontavam para uma canção que deveria ter elementos raros. Os que observei são os que exporei a seguir e que detalham a canção que considero um dos pontos altos da obra de Manu Lafer junto a Afeto Santo; e considero ambas pontos altos do cancioneiro brasileiro.

Pós-modernismo

Colocar materiais altamente conhecidos em contextos novos e que dão novos e diferentes significados a tais materiais é a característica número um desta canção; sendo assim, seguindo a terminologia do arquiteto italiano Paolo Portoghesi (1931) e de seu livro Depois da Arquitetura Moderna (publicado originalmente em 1970), podemos classificá-la como pós-moderna. Exemplifico a seguir.

Quando ruma para o ponto culminante, modula um tom, como geralmente se modula, porém para sentido invertido: de ré maior para dó maior, não para mi maior como tanto acontece. Neste ponto, diminui-se a tensão quando o clichê é aumentar.

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Outro clichê com o qual esta canção lida é o cromatismo instrumental, característico do acompanhamento da Aquarela do Brasil, de Ari Barroso (1903–1964), e também de Carinhoso, de Pixinguinha (1897–1973). Manu Lafer, ao contrário do previsível, usa o caminho melódico instrumental a cada momento em uma função harmônica ou disposição do grau, e não mormente nas mesmas, como geralmente acontece em sambas. O resultado é ouvir algo conhecido mas que parece diferente, algo diferente que parece conhecido. Esse clichê já é anunciado nos dois acordes iniciais da Cidade Inacabada.

E este padrão melódico-harmônico dialoga diretamente com Cidade Submersa, de Paulinho da Viola (1942), para a qual Manu Lafer responde. Já na introdução instrumental de Cidade Submersa (abaixo) está a complexidade cromática característica da “Cidade inacabada”, inclusive o cromatismo característico de trechos instrumentais de sambas como em Aquarela do Brasil, e o flerte com falsas relações de resolução harmônica.

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Violão

O jeito de tocar violão de Manu Lafer está em lugares no triângulo João Gilberto (1931), Gilberto Gil (1942) e Luiz Tatit (1951). Com João Gilberto, Lafer aprendeu a encadear harmonias densas sem tomar o foco do canto; com Gilberto Gil, a adensar a parte rítmica; e com Luís Tatit, de quem foi aluno diretamente, aprendeu aumentar a autonomia do acompanhamento para este equilibrar-se com melodias entoadas ou recitadas. destaco também a influência de Ítalo Peron (1955), com quem Lafer estudou harmonia. E destaco porque o jeito de tocar e de harmonizar, no cancionista, são pensados altamente imbricados.

Harmonia

A harmonia de Cidade Inacabada quase sempre é suspensiva e se afasta das tonalidades ou modos. Essas características estão presentes no violão de Cidade Inacabada e de um modo em geral na obra do cancionista, sobretudo a influência de João Gilberto no tratamento cadencial para os acordes, que se movem nota a nota muitas vezes como um coral a quatro vozes, de modo que quase nunca se pode mudar a localização de um acorde sem a pena de tornar o acorde seguinte difícil ou não exeqüível e sem comprometer a tensão escolhida e feita adequada para as cordas escolhidas. Conduções de vozes estão demonstradas pelas linhas e ligaduras do exemplo abaixo. A dificuldade ou impossibilidade de mudança de disposição dos acordes você pode experimentar tocando a música em discussão.

A principal modulação é um tom abaixo da tonalidade de onde começa o canto, o que é oposto da imensa maioria das canções. Isso é tanto um recurso de expressividade que converge com a letra, que no momento parece abrandar uma insatisfação (“Deixa ter tua promessa apaixonada), como uma ironia para com o clichê (o corriqueiro é aumentar a tensão, ir para o agudo, enquanto Lafer surpreende diminuindo a tensão, indo para o grave); e demarca a forma musical.

De destaque também são mudanças sutis em conduções harmônicas que se poderiam se repetir mas não se repetem, o que traz variedade e complexidade para o nível da frase. Repare nos compassos 57 e 67.

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Cifras

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Detalhe: o método Presto de cifrar

Em decorrência desse jeito de tratar acordes como contraponto, a localização da nota importa, fazendo com que o padrão de cifrar tradicional, criado para homogeneizar a improvisação, e que por isso ignora a localização das extensões harmônicas, não sirva para esta canção e para a maioria das canções do autor. Daí que foi preciso a redação de um método novo e próprio de grafar cifras, que sintetizasse o que a Presto vinha praticando para Manu Lafer, o que ficou a cargo de Guilherme Gama (1983), editor master da Presto. Mesmo este método tem uma limitação: às vezes a escrita fica muito mais complexa que a execução instrumental, razão pela qual adotou-se também a escrita de diagramas de acordes (‘fretboards’).

Forma

Na obra de Lafer, as formas são as típicas de canção, mas comumente com pequenos desvios, como se dissesse algo como “já sabemos o que viria agora, então passemos à próxima parte”. Cidade Inacabada não: a forma é atípica (intro; A, B, i; C, A, i; C, A, B; intro), o que, forçando muito, chamaríamos de rondó. Mas não soa rondó.

As sessões em tonalidades menores (A1, B1, A2, A3, B3) são principalmente em modo dórico, mas passam pelo modo eólico; é uma maneira de se afastar da tonalidade, uma vez que os modos dóricos são usados para polarizar graus afastados. Em contraste, as sessões em tonalidades maiores afirmam seus centros tonais.

Melodia

Em Canção e na obra de Lafer, a melodia equilibra em complexidade a harmonia, sendo mais simples ou complexa em razão inversa a esta. Não é bem o caso de Cidade Inacabada, na qual a melodia é complexa por si. Destaco como interessante que a melodia vai resolvendo, liquidando tensões harmônicas mesmo quando as cadências estão suspendendo resoluções. O resultado é que a melodia vai se apoiando em notas recorrentes enquanto a harmonia se afasta dos centros tonais.

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Outro destaque é para as pequenas rugosidades decorrentes dos choques cromáticos de passagem entre harmonia e melodia, oriundos de notas antecipadas ou atrasadas. Estes são um complicador para quem canta enquanto toca.

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Letra

Sofrer é tua envergadura
Loucura, é você que me procura

Me deixa gostar de você
Me deixa atrever ter você
Apesar da miséria da
Inacabada cidade que não se fará
Minha diva há de vir dadivosa dançar
Minha musa, de mim amorosa,
Rapsódia, sem moda,
Alcançou teu cantar

Expulsei o teu desprezo à minha rosa
Te ver já não é suplício de amor
Aturei os teus costumes de teimosa
Te ver já me dá a força, que eu sei,
Você goza por crer
Que eu devoto em vão,
Um abraço na multidão
(Solidão se mistura)

Agrura
És cativa e és clausura
Costura
E a razão que em mim te jura
Quando o piso encher
Quando o asfalto arder

Deixa ter tua promessa apaixonada
Sorri para me dar sentença de amor
Deixa ter o teu ciúme, que te evoca
Te despe do som
Que à noite, na luz, se aloca
E desloca a visão
Sorve teu sal, salga-te a mão
Te amarra à minha ilusão

Destoa
Carne à carne, morna e crua
Garoa
Desmorona a criatura

Me deixa morar em você
Me deixa ver a nação
Danação!
Emoção sobrevoa a favela
É a rosa, é rocha!
(É a rosa, é a rocha!)
Teu barranco é pro céu que te arrasta
Ao rasgar teu arranha-chão
Dá cidade, dá salvação

Lafer se vale de inúmeros recursos poéticos, que existem em função do objeto da letra. Isso explica não haver uma forma fixa poética. Dois recursos que julgo de destaque:

  • aproximar palavras abarcadas em outras, como “mar emaranhado” e “a dor adormecer”;
  • como em A Ostra e o Vento, de Chico Buarque, na qual “Vai a onda, vem a nuvem, cai a folha. Quem sopra meu nome?” é cantado “Vai, a onda vem, a nuvem cai, a folha quem… sopra meu nome?”, em alguns momentos de Cidade Inacabada a letra é articulada no meio dos versos, de tal modo que se cria ou se esfumaça sentidos:
Apesar da miséria da
Inacabada cidade que não se fará
Minha diva há de vir dadivosa dançar
Minha musa, de minha amorosa,
Rapsódia, sem moda,
Alcançou teu cantar

É cantado:

Apesar da miséria da inacabada
Cidade que não se fará minha diva
Há de vir
Dadivosa
Dançar
Minha musa,
De mi-
nha amorosa,
Rapsódia, sem moda,
Alcançou teu cantar

No meu entendimento, o eu-lírico da canção está, como em Cidade Submersa, vendo a si quando vê a cidade em sua simultaneidade de sentimentos lúgubres e esperançosos. Ambas, reservadas as proporções, intenções e alcances de cada qual, ecoam The Waste Land, de T. S. Eliot (1888–1965). Talvez a letra cante um amor descrito, mas vagamente, à semelhança da cidade. Paulinho da Viola e Manu Lafer remetem a metrópoles brasileiras, essas que, com seus morros, matam, prédios, construções, raramente sentem no asfalto o Sol que, como A Eternidade do poema homônimo de Arthur Rimbaud (1854–1891), evade-se com a tarde. “Só o suplício é certo.”

Acompanhamento

O acompanhamento ao violão, ou do piano, no caso de Da Janela – um arranjo de Luiz Brasil (1954), para o álbum Ta Shemá, de 2008, na maioria das vezes faz parte da composição, tal como ensinou Schubert e Schumann, razão pela qual é tão difícil escrever um arranjo de Manu que mantenha as minúcias de suas canções. Creio ter sido este o motivo pelo qual o arranjo que foi para o álbum é um acréscimo de bateria ao violão existente, sem nada mais.

Conclusão

Pelas razões expostas que considero Cidade Inacabada um dos pontos culminantes da MPB e um samba de sambas.


Contrate a Presto para fazer a sua partitura, transcrição, música ou livro.

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Um comentário sobre “Apoteose da MPB: o arqui-samba Cidade Inacabada

  1. Pingback: Guia de escuta da discografia autoral de Manu Lafer | Blog da Presto

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