Prefácio ao livro “Um rim por um trago”

por Flávio Oliveira

Este livro, caro leitor, anda por outro caminho que não o da comum coletânea de contos que um autor decida reunir dentre os seus melhores publicados e (ou) inéditos, ou compilados por um editor ou por um crítico ou por outro tipo de organizador de livros. Este outro caminho é o da concepção de um livro especial: livro de contos, pensado como tal, com plano único – sem admitir alternativa. Assim foi que fiz minha leitura de Um rim por um trago e oito contos previsíveis. Difícil tarefa, esta, de prefaciar um livro singular, de um autor singular, cujo interesse é oferecer ao leitor manifestação literária que tem como fundo, objeto e resultado final narrativas em sequência orgânica. 

Tarefa difícil? Sim. Como explicar a dificuldade? Para fazer um exercício de raciocínio (ou de fantasia?), a concepção de tal projeto, o de um livro especial – este mesmo: Um rim por um trago e oito contos previsíveis –, que contém nove coisas literárias distintas em tudo, só poderia ser feita por um artista-escritor-autor (e ao mesmo tempo leitor!) – um desassombrado e apaixonado pela forma curta de contar histórias; ou, quem sabe, não por este, mas por outro absolutamente avesso, não afeito a este gênero de escrita – a história curta – que, de inopino, decidisse criar um projeto deste tipo, justamente com peças literárias de sua autoria, para dar sentido ao que há muito tempo parece ter perdido o significado, qual seja, a publicação de coletânea de contos selecionados, postos em um livro qualquer; se por este também não, quem sabe o projeto fosse levado a cabo por alguém que, por paixão pura tanto pelo escritor quanto pela obra dele, decidisse estabelecer uma definitiva e imutável sequência perfeita de contos, dando vida ao tal projeto – com a magia e a sabedoria de priorizar teor, personagens, linguagens e essência narrativa de cada escrito. Imaginar este alguém pode parecer ficção, mas não é. Imagina tu, leitor, alguém com a arte, o espírito crítico e a autoridade de uma Susan Sontag.

Aqui dou-me a um parêntese sobre Susan Sontag. Escritora, crítica e, acima de tudo, amante da literatura e leitora contumaz, quando leu a tradução para o inglês das Memórias póstumas de Brás Cubas teve uma surpresa tão grande – como ela mesma confessa – que concebeu e publicou, em 1990, um ensaio literário definitivo. Considerou esse romance como o mais importante escrito em idioma neolatino e Machado de Assis como o criador do romance moderno. O autor esteve esteticamente muito adiante do seu tempo. E isto é o que interessa aqui, pois em Machado de Assis o novo foi visto, em seu tempo, pela ótica do velho. Vale lembrar-te, leitor, que este ensaio ainda repercute internacionalmente, trinta anos depois de ter sido escrito; e, também vale rememorar, foi incorporado às novas edições da referida tradução das Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês (Epitaph of a Small Winner). Eis-nos diante dest’outro escritor brasileiro, o Thiago Rocha, que não está a merecer ser lido pela ótica do velho

Leitor assíduo que sou de literatura, há muitas décadas, tive, a uma só vez sobressalto, susto e surpresa ao ler a obra de Thiago Rocha, enxergando nela o projeto – algo planejado que, no fim das contas, oferece ao leitor rara e refinada estética literária a lançar luzes para uma reflexão filosófica e social do que possivelmente não escutemos, nem enxerguemos, nem sintamos mais e que está aí, à nossa volta.

Se as histórias deste livro de contos são ficção pura – como o próprio autor anuncia nos preâmbulos do livro – elas vão na contramão do adágio que diz: “a realidade de nossos dias supera a ficção”. O autor faz-nos viver, pela ficção, a realidade de nosso entorno e por toda parte. Os personagens estão aí, à nossa volta, cada um com o universo particular de suas especificidades quanto à vida do quotidiano, a se projetar nas relações com os outros e com as instituições.

Com precisão e mira certeira, o autor põe o leitor a pensar sobre o que é entender e compreender os acontecimentos – seja no mérito do comportamento dos personagens, seja no transcorrer das ações. Mais do que tudo, descarna, expõe cruamente aspectos da ética e dos moeurs na complexa rede diversificada e buleversada pelo caos da vida. Entenda-se caos, aqui, no seu significado de sucessão de movimentos contínuos imprevisíveis, desordenados, mas à mercê de interferências poderosas; e também se entenda caos no sentido de possibilidade, à maneira da oposição Caos-Harmonia – referida pelo antigo mito e também pensada por Platão e Aristóteles.

Ninguém tem que conhecer a biografia do autor Thiago Rocha para ler esta obra. Contudo e não obstante, os personagens ficcionais e os acontecimentos fatuais revelam a intimidade que só existe na experiência pessoal de cada um e em suas vivências. Enigma (ou mistério?) está contido nesta aparente repetição circular do quotidiano de nosso tempo que o autor não cessa de expor. Mostra-nos que os personagens dos contos estão por aí, à nossa volta e volta e meia, na leitura, o escritor faz com que com eles nos confrontemos. Nesta perspectiva, prezado leitor, observa que cada conto traz uma linguagem peculiar, própria da ambiência dos personagens e das ações, varando extremos: vai do específico do informatiquês às gírias da internet e do Google; anda pelo economês e pelos específicos falares do nicho dos fundos de investimento e da bolsa – para citar apenas dois dos muitos fulcros idiomáticos peculiares. E eis que de repente tropeçamos na leitura por não estarmos familiarizados com um ou outro quase dialeto pelo qual se expressa o narrador ou os falantes do conto. Causa pasmo o domínio da linguagem, por parte do autor que, para nosso gosto, surpresa ou perplexidade, nos faz aprender, renovar ou rememorar.

O leitor reconhecerá, sim, nos contos um escritor que sente e trabalha, que relata coisas vividas por ele, tão vivas são as memórias do que ele nunca viu. Sehnsucht? E com ele começamos também a sentir a saudade do que nunca vimos e compartilhar aquilo que é intraduzível e vive em nós se pensarmos no conceito de Sehnsucht – conceito este que traz a discussão filosófica proposta por Sören Kierkegaard. No primeiro conto, Tristão e Belita, já ocorre o possível-impossível que se desdobra, como um tecido em constante transformação colorida, em distintas concretudes a cada novo conto. Permanece como motor de impulso, fazendo com que cada conto nos remeta ao seguinte. Até o final do livro. O último conto, Mapas do ocaso, te mostrará melhor, leitor, o que desenvolvo neste parágrafo – e, de certa forma, poderás voltar a ler este Prefácio como um Posfácio. Convido-te a fazê-lo, sem prejuízo nenhum para ti.

Não te vou aborrecer, estimado leitor, comentando ou desdobrando referência a cada uma das histórias que vais ler. Elas estão a te esperar. Este mesmo autor, além de ser um escritor que sente o mundo em que vive e nele trabalha, também vem a ser um especial narrador que recupera, com excelência artística e esmero de atenção, idiomas próprios dos falares, pensares e saberes de cada personagem, desafiando-nos a enfrentar os não-abismos em que ele nos coloca, nos precipita, na medida em que não nos podemos apartar da realidade que estamos vivenciando ao ler cada conto. Correndo o risco de me repetir, posso te afirmar, leitor, que no frigir dos ovos, nós somos os personagens a quem Thiago Rocha dá vida na cena de sua ficção.

Há que se destacar outra singularidade neste livro, qual seja, a unidade na diversidade. A linguagem do autor, no percurso da obra, permanece presente e viva. Neste andar, vem-me a imagem de um pássaro que pairasse, planando em seu voo, sobre a linha de tempo do desenrolar dos contos, do início ao fim do livro. Algo paralelo ou análogo àquilo que os antigos chamavam de Estilo. Há que se observar, leitor, que o autor estabelece duas linhas de narratividade simultâneas e paralelas que permeiam os contos: uma que tem a aparência de quem nutre um desprezo absoluto pela correção do idioma oficial e outra que, afirmando que é isto mesmo só uma aparência, afirma o idioma oficial na extensão em que cria novas alternativas de operar literariamente com ele, dignificando-o. Eis o novo, a cada instante. Nesta dupla operação, o autor, por assim dizer, recorre não só à extensa memória literária de que é detentor, mas também revisita um vasto conhecimento de recursos idiomáticos de uso específico. Aparecem aí – como já referi anteriormente – vocabulários especiais, numerosos jargões usados no dia a dia das relações humanas em atividades de trabalho e em outras interações pessoais do e no aqui-agora. Da escrivaninha do escriba de duzentos anos atrás à mesa de um boteco das redondezas do terminal de ônibus do Tietê, ou algures em qualquer parte da velha pauliceia – presentemente já sem nenhum desvario, digo assim – o virtuosismo linguístico do escritor Thiago Rocha prima por nos proporcionar sabor literário incomum em diálogos, conversações, contação de histórias e também nos embates cênico-dramáticos nos quais nos faz mergulhar.

Cheguei a pensar que não teria cabida escrever um prefácio num livro que proporciona tão inesperada e incrível (literalmente) experiência de leitura. Contudo e não obstante, achei que seria útil, sim, um prefácio, pois a fruição e a leitura de algo novo, para qualquer leitor, é um enorme desafio ou mais do que isto: uma aventura. Pus-me nela, por vontade própria. Pela internet, é importante que saibas, leitor, vim acompanhando a produção literária desse artista e interessei-me por ela. Finalmente, movido pelo entusiasmo de ter algo distinto de uma coletânea qualquer de contos – pois esta obra foi pensada como um projeto distinto, um livro especial, livro de contos, como já mencionei e reiterei anteriormente – tomei a peito, deliberadamente, escrever este prefácio e nele mencionar ao leitor, tanto quanto possível e dentro de meus limites, aspectos que considero extremamente relevantes. Como ocorreu comigo, acredito em que Um rim por um trago e oito contos previsíveis seja uma obra singular que jogará seus leitores em um voo de surpresa e rara fruição literária.

Imprimatur – e que se faça a leitura.

Flávio Oliveira – músico

(Estância Velha, Rio Grande do Sul, 29 de novembro de 2020)

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