por Manu Lafer
Em O inferno é agora: dez contos sincréticos – terceiro livro de ficção de Thiago Rocha –, o autor apresenta seus contamentos, que “batiza” de conjunto e qualifica como “sincréticos”, perguntando que “diabos” isso significa. E o que isso significa?
Os contos são inspirados nos Dez Mandamentos – chamados Pronunciamentos pelo judaísmo, religião que se debruça sobre as diferenças entre como eles estão apresentados nos livros Êxodo e Deuteronômio e os trata como um código a ser expandido e constantemente interpretado – tais como foram aculturados no país através do catolicismo. Esse expediente atrai e fala mesmo com os leitores do Brasil de hoje e suas religiões transformadas e se transformando. Mas, não somente com eles.
Os leitores certamente se reconhecerão nas personagens. Terão espelhadas sua urbanidade, sua juventude, sua experiência do meio acadêmico e de convivência com a vizinhança e até rotas de turismo (um conto descreve Paris) e polêmicas de torcedor de futebol.
Quem tiver curiosidade de olhar o verbete google no Google aprenderá que este foi um nome dado por uma criança e que também foi usado por um prêmio Nobel para exprimir um conceito matemático de difícil compreensão e alcance. Trata-se de um número exponencial que não é possível de escrever por extenso nem indo da Terra à Lua, nem nos sonhos do Cosmos de Carl Sagan.
Fazendo uma transleitura concretista da palavra google, é possível dividi-la em duas (ainda que em inglês, o que seria compatível com O Inferno de Rocha, pródigo em invencionices, italianices e galicismos): go ogle.
Numa livre tradução, “vá olhar (com atenção)”. Em francês, um preconceito carregando desrespeito disfarçado no verbo toiser. Em grego, “observar com atenção”, ou teoria. O que os contos do livro diriam que só existe na prática… E o ditado popular diz que, na prática, a teoria é outra. Talvez explicando o que seja sincretismo, pergunta do autor. A ficção do autor está, por este rodeio teórico barroco, explanada e justificada e, sobretudo, a léguas de distância do Google Scholar.
Os pecados elencados dão unidade ao tema de cada conto e ao conjunto do livro, tal qual o autor intenciona. Como na série de filmes de longa-metragem do diretor Krzysztof Kieślowski, Decálogo, feita para a televisão polonesa nos anos 1980 (quando o Papa e a Guerra Fria discutiam assuntos universais), a literatura convida a aproximar desse universo as vicissitudes do dia a dia das pessoas comuns. Os contos de O inferno é agora fazem isso sem pretensão teológica ou moral, de uma maneira lúdica, botequeira (de inferninho) e pop (para a religião). Assim como as citações literárias e das artes plásticas, que percorrem praticamente cada página, mas de modo deliberadamente leve quanto à erudição.
Esse modo ligeiro, como se diz em esportes, medicina, literatura e música, é executado através do maior mérito do livro e que confere seu estilo: seu ritmo.
Os contos e, por conseguinte, o livro são autorais. Não são pastiche nem metalinguagem. Nem são, como a leitura desavisada indicaria (novamente, usando a linguagem musical), rapsódia. São suíte.
Ao ler a nota de autobiografia, que o autor invoca como de sua propriedade – ao contrário dos Creative Commons acessíveis a todos que usarem conteúdo sem direitos reservados –, tem-se a tendência, também descuidada, de crer que o ritmo da prosa é consequência da formação musical do autor. Não é.
Os autores citados, sim, podem ser mais ou menos reconhecidos nos meios leigo e acadêmico. Ilustramos com algumas dessas citações ilustradas: Nelson Rodrigues, Juó Bananère, Arthur Rimbaud e Liev Tolstói.
Com eles, o autor de Um rim por um trago e oito contos previsíveis e Sabrina: um conto de mel ascende ao seu Inferno literário.
São Paulo, dezembro de 2021.
MANU LAFER